Rua dos caracóis

Em Lisboa há uma rua que é sinónimo de caracóis. Ali, três restaurantes e uma casa de pasto dedicam-se a confeccionar um dos mais disputados petiscos de Verão. Do final de Abril ao início de Setembro, a chamada época dos caracóis, por ali passam milhares de clientes e toneladas de caracóis. Viagem à rua do Vale Formoso de Cima, a Meca dos caracóis.
Dele se diz que carrega a casa às costas, que é lento, que põe os pauzinhos ao sol. Para os franceses são escargots, para os italianos lumachi, iguarias gourmet servidas apenas em restaurantes de luxo. Em Portugal foram, durante anos, sinónimo de comida para as galinhas ou lesmas que arruinavam hortas e jardins. Mas os tempos mudaram. Hoje, os caracóis são sinónimo de Verão.Quando o calor dá sinais de vida, começa a época do caracol. Chega o final de Abril e começam a aparecer cartazes improvisados onde se lê ‘Há caracóis!’. Petisco apreciado de Norte a Sul do país, é, no entanto, de Lisboa para Sul que mais se consome. E é justamente na capital que se encontra o santuário dos caracóis, o recordista de vendas em todo o país: O Filho do Menino Júlio dos Caracóis, normalmente conhecido como Julinho dos Caracóis.
Este foi o primeiro restaurante a instalar-se no Vale Formoso de Cima, uma rua perdida na zona de Marvila, outrora dominada por fábricas como a JB Fernandes, o Baptista Russo e os CTT. Atrás de si, vieram outros restaurantes de petiscos – sendo o principal o caracol. No total, só nesta rua trabalham mais de 30 pessoas, resultado do negócio dos caracóis. Em comum têm todos os caracóis, mas também o facto de serem todos restaurantes familiares. Ali, pais e filhos trabalham lado a lado.
A aventura da família Rodrigues começou em 1958, quando Júlio tomou conta de uma taberna que vendia comida e carvão. «Lembro-me que, na altura, não havia quase nada nesta rua. Só víamos três carros na rua inteira», recorda o filho, Vasco, actualmente com 51 anos, que nasceu ali, na parte de trás da então taberna. Não sabe dizer como nem porquê o pai começou a cozinhar caracóis, mas lembra-se de ir «a Sintra apanhar caracóis que depois ele cozinhava». À data o petisco podia ser saboreado ali, num restaurante em Odivelas e noutro em Alcântara.
O negócio foi crescendo e, quando tinha 21 anos, aquele que é hoje conhecido como ‘rei dos caracóis’ tomou conta do restaurante. «No primeiro dia chorei o dia todo, com medo que não conseguisse estar à altura do meu pai». Mas estava: no ano passado fez obras e transformou radicalmente o restaurante – de 40 lugares passou para 310. Ainda assim, a casa continua a estar sempre cheia. «O que tinha de poupanças enterrei nestas obras, agora estou a começar do zero. Mas esta é a minha vida, estou aqui eu, a minha mulher e as minhas filhas, sou doido por isto! Tenho muito orgulho e vaidade nisto tudo. Cada vez há mais casas com caracóis, até nas pastelarias se vendem, mas nós mantemos sempre a mesma qualidade e o mesmo sucesso».
O sucesso vê-se sobretudo na rua, onde as pessoas esperam às dezenas por uma mesa. Chegam em famílias ou grupos de amigos. Alguns são caras bem conhecidas e têm as suas fotografias espalhadas pelas paredes, como o apresentador de televisão Fernando Mendes. Há clientes que aprenderam ali a gostar de caracóis, há outros capazes de comer 15 doses seguidas. Chegam de Lisboa, mas também vêm de propósito do Algarve, Leiria, Fátima e até de Paris. «Tenho um cliente português que vive lá e que já se meteu num avião só para vir comer um pratinho». Alguns clientes apenas visitam esta zona da cidade – paredes meias com Chelas – para comer os caracóis do_Julinho. É o caso de Bela, Manuel e a filha Lara, de seis anos. Desta vez trouxeram um amigo, o brasileiro Zé Roberto, de visita a Portugal: «Nunca tinha experimentado caracóis, foi a primeira vez», revela. «Mas ainda não cheguei a nenhuma conclusão sobre esta coisa de comer caracóis», brinca. A verdade é que, se são muitos os que não resistem a este petisco, outros não ultrapassam a repulsa inicial.
Alguns clientes procuram evitar as filas e vêm buscar para levar para casa, num dos baldes que o restaurante vende. «No final da temporada levo uns quantos baldes, congelo e depois vou comendo», conta Gabriela Santos, enquanto espera pelo seu balde com o filho mais jovem, de 22 meses, pela mão. «Ele também já come», conta.
Até os chineses já se renderam aos caracóis do Julinho. «Este ano estamos a ter muitos clientes chineses», conta Vasco Rodrigues. «Tiram fotos, ficam pendurados no balcão a ver como é que eu faço e, no outro dia, tive um grupo que me fez uma proposta de compra do restaurante. Disse que nem pensar!».

A força dos braços
O dia no Julinho começa logo às 10h, até porque o restaurante está aberto para o almoço. Pouco depois dessa hora, Fernanda Rodrigues, mulher de Vasco, começa a lavar caracóis, processo fundamental para assegurar o sabor do petisco. Só vai parar já a noite vai a meio, perto das 22h. «A minha mulher esteve 26 anos a lavar caracóis sem parar». Quando os braços não podiam mais compraram uma máquina que lava 15 quilos de cada vez. Ainda assim, depois de uma primeira limpeza na máquina, Fernanda passa os caracóis por água manualmente, enquanto tira folhas e outras impurezas que tenham resistido.
Durante a época do caracol, todos os dias (com excepção para a folga, à segunda-feira), às 16h, Vasco Rodrigues põe a primeira panela no fogão. São 30 minutos em lume brando, com os aromas a cebola, alho e sal a tomarem conta do espaço. A receita conta ainda com um segredo que data dos tempos do próprio Júlio. «O meu pai sempre me pediu para guardar o segredo e assim faço». A cada nova ‘fornada’ toca o sino para avisar os comensais que o petisco vai a caminho e começa a servir as doses. Até às 22h é difícil ver Vasco Rodrigues fora daquele metro quadrado em frente ao fogão. «Ao fim do dia nem posso com os braços. Às 22h cozo a última panela do dia, sento-me, como quatro ou cinco pratos de caracóis e bebo umas imperiais. À meia-noite é que janto. Faço isto todos os dias». Quando os caracóis terminam, na primeira semana de Setembro, fecha um mês para férias. Até lá passam pelas suas mãos toneladas de caracóis. «Nunca revelo as quantidades, foi outra coisa que o meu pai me ensinou». Ainda assim, segundo o fornecedor de Vasco, só no fim-de-semana passado foram ali entregues 500 quilos do molusco.

Viciado em caracóis
«Quando começámos, em 85/ 86, as pessoas só vinham ao nosso restaurante quando o Júlio estava cheio», assume Zélia Amaral, proprietária, juntamente com os pais, da Varanda do Vale Formoso, mesmo do outro lado da rua. Com o tempo foram ganhando o seu espaço e hoje também já atingiram as centenas de quilos por semana. Para este número muito contribuem clientes como Manuel Francisco Reis, 75 anos, fã deste petisco há mais de 50 anos. Vem mensalmente da Pampilhosa da Serra para visitar os filhos. «E para comer caracóis na Varanda!», assegura. Nunca come menos do que quatro ou cinco doses, mas já chegou a ultrapassar as dez. Quando regressa a casa leva sempre consigo um balde com cerca de dez doses. «É ao tempero que não resisto», confessa. A paixão pelos caracóis é tal que, no final da conversa, quando acede a uma fotografia, só pergunta: «Se for preso por causa desta coisa do jornal, jurem que me levam caracóis à prisão!». Zélia sorri. São clientes como Manuel que mantêm o negócio bem vivo e alheio à crise.

Caracoletas Vs. caracóis
Graça Saraiva, 51 anos, nunca na vida tinha comido caracóis quando se aventurou a cozinhá-los pela primeira vez. «Quando tentei fazer caracóis em casa dos meus pais eles de seguida deitaram fora o tacho tal era a má impressão que tinham deste bicho». Graça nem sabia ao que deveriam saber os caracóis, mas deixou-se guiar pelo instinto de cozinheira. Juntamente com o marido, lá conseguiu encontrar o tempero certo. «Os primeiros clientes foram uma espécie de cobaia», recorda.
Veio com o marido de Pinhel, na Guarda, para Lisboa, no arranque da década de 80. Já na capital, o marido trabalhou na restauração e Graça foi costureira, até se aventurarem num negócio próprio: descobriram um pequeno café no início da rua do Vale Formoso de Cima, transformaram-no na Cervejaria Germano e abriram portas. O sucesso não se fez esperar e hoje é frequente encontrar uma fila de espera que ocupa todo o passeio em frente ao restaurante.
Apesar de o espaço ser consideravelmente mais pequeno do que o Julinho é outro local desta romaria dos caracóis. Seis dias por semana, das 7h30 até ‘expulsar’ os últimos clientes, por vezes já depois da meia-noite, Graça Saraiva conduz o negócio sozinha com a ajuda das filhas, após a morte súbita do marido. A sua simpatia ditou que muitos deixassem de se referir ao restaurante como Germano e o apelidassem de Dona Graça. A Dona Graça das caracoletas. É que aqui, apesar da fama dos caracóis, são as caracoletas assadas as rainhas. Com limão, margarina, vinagre, sal e picante torna-se difícil resistir ao aroma cada vez que Graça Saraiva as retira do lume. Até para a própria: «Caracoletas ainda como muito, caracóis já me fartei».

Contrariar os gigantes
Bem lá ao fundo da rua, um toldo salta da fachada do número 94. Muitos do que nesta rua são habitués nem sequer sabem o que para ali se esconde. Fundada em 1991, a colectividade do concelho de Castro Daire é o David nesta luta de titãs. É a típica casa de pasto de bairro, com troféus e medalhas nas paredes, ponto de encontro para beber um café ou uma mini.
Há oito anos Dolores Monteiro passou a tomar conta da cozinha deste espaço. Já tinha passado dos 60 anos, as cinco filhas estavam criadas, pelo caminho tinha deixado o trabalho numa fábrica de sabão e outro como mulher-a-dias. A sua reforma e a do marido não eram suficientes, por isso aceitou o convite para tomar conta da casa de pasto.
Cozinheira de mão cheia, seguiu o exemplo dos outros restaurantes da rua e aventurou-se nos caracóis. «No primeiro ano saíam-me sempre mal, mas fui melhorando. O próprio Vasco, do Julinho, veio cá dar-me força. A verdade é que não sou concorrência, não posso combater os grandes lá de cima da rua», diz com um sotaque que ainda denuncia as raízes de Castro Daire, empoleirada no pequeno degrau em madeira que lhe permite chegar ao fogão.
Habituada a fazer petiscos como pica-pau ou moelas e a servir paio e queijo de Castro_Daire, quando chega a temporada do caracol começa o dia no quintal a lavar caracóis. Depois junta-lhes sal, alho, malagueta e Knorr e põe a ferver. Só faz uma panela de cinco quilos por dia. «Quando acaba, acaba». Entre os clientes mais habituais estão as forças da polícia que aproveitam uma pausa no serviço para por ali passar. «Já cheguei a ter oito motas da polícia aí paradas à porta», diz, orgulhosa. As caracoletas assadas são outro dos petiscos com saída.
Mesmo no pico da temporada dos caracóis, a casa de Castro_Daire parece um mundo à parte. Lá para cima, onde vivem os Golias desta rua, o rebuliço durará até à primeira semana de Setembro. Depois, acaba a época de caracol e tudo muda. Os restaurantes mantêm a porta aberta, é certo, mas a rua parece hibernar até ao ano seguinte. Em 2014, aos primeiros raios de sol do final de Abril, a romaria recomeçará. E talvez para o ano Vasco Rodrigues já tenha conseguido concretizar o seu mais recente sonho: «O que eu mais queria era que me deixassem construir um caracol gigante na rotunda». Na tal rotunda que até a polícia já rebaptizou informalmente de rotunda do Julinho dos caracóis.

por Raquel Carrilho, fotografia de Raquel Wise
sol.sapo.pt
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